sábado, 22 de fevereiro de 2020

Clima pesado

Claro que ele aprontou alguma. Agora fica aí de calundu. Não se abre com ninguém. Os dois vinham numa cumplicidade irritante e já fazia é tempo. Todos na repartição perceberam. Alguns dos mais velhos até o alertaram para que tomasse cuidado. Confiança demais atrapalha. Diziam. Não deu outra. Mas ninguém sabia o motivo do afastamento definitivo. Cada um pro lado. Trabalhando juntos, não se olhavam. Cada um por si, cada um para um lado. Os dois sofrendo. A turma querendo ajudar e sendo afastada brutalmente com o recado para que não se metessem. Era assunto deles. O chefe foi avisado, deu de ombros. O tempo foi passando e nada de reconciliação. Os demais se acostumaram e tocaram o bonde também. Pelo andar da carruagem, o clima pesado, não interferiu no ambiente de trabalho, não se espalhou entre os colegas. Seguiram seu rumo, cada um à sua maneira. Até que um dia um deles foi transferido. Para alívio da repartição.

Danos morais

Vou entrar contra a empresa e preciso que você vá de testemunha. Não vou deixar barato o que aqueles putos fizeram comigo todos esses meses. E agora no final ainda aprontam no acerto também. Tá muito errado. Levei a rescisão no sindicato e eles me mostraram as falhas. O advogado que eles me indicaram, eu ainda não conheço, ele ficou de me receber semana que vem para tomar ciência dos fatos. O rapaz lá do sindicato que disse que vou precisar de no mínimo três testemunhas. Por isso você é imprescindível, mesmo ainda estando contratado. Entramos no mesmo mês e sabemos tudo da empresa, a forma que fomos tratados. Os achaques, os rompantes dos encarregados nos tratando feito lixo. É a nossa hora de expô-los. Trazer tudo à tona. Lembra daquela vez que deram um gancho no Manoel, só porque ele se recusou a transportar mercadoria na chuva. Ele foi humilhado na frente de todo mundo. Todos nós fomos humilhados naquele dia. Danos morais, acho que é isso daí. Cabe reclamação por ofensas morais. E as horas extras? Essas só podemos provar com testemunhas porque o encarregado trancava o relógio de ponto e não nos deixava bater o ponto na saída. A conversa era sempre a mesma, que as horas extras seriam anotadas por fora e viriam no pagamento. Balela! Engodo! De tudo o que eles pagaram de horas extras dessa forma não dá nem vinte por cento das horas que fizemos. Quantas vezes, cansados, chegava um caminhão com mercadoria em cima da hora e o encarregado vinha todo nervosinho dizendo que tínhamos que descarregar tudo antes de irmos embora? E tem mais, o Juliano, que saiu o mês passado, o Zé Bigorna e o Praxedes que foram demitidos na mesma leva que eu, estão pensando em agir também. Juntos, poderemos ter mais força contra a empreiteira. Eles jogarão duro. Eles sempre jogaram duro contra nós. A turma do deixa-disso, um bando de puxa-sacos, tá dizendo para não fazermos isso, que vamos nos queimar na praça e tal e tal. Já pensei muito e pelo menos eu estou decidido. Se os cabras se deixarem levar, não tem problema, entrarei sozinho. Por isso conto contigo como minha testemunha principal.

Começou o Carnaval

Sábado de Carnaval. Ouço Almir Sater e acompanho as notícias do Carnaval. Feliz em ver em Belo Horizonte uma festa a cada ano maior e mais bonita, mobiliza a cidade com mais de 300 blocos desfilando pela cidade. com imagens ao vivo agora pela manhã o pessoal não arreda o pé ainda com muita animação. Carnaval é criatividade! Os desfiles das escolas de samba dão exemplo ao mundo. Exemplo de arte, de respeito, de organização e espírito de equipe.
No Rio, já na primeira noite de desfiles a Acadêmicos de Vigário Geral dá o recado de como será esse Carnaval 2020. Um enorme boneco do Bozo, o  "Vigarista Geral" com a faixa de presidente no peito.
É só o começo!

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A entrevista

A entrevista estava confirmada para a primeira hora da manhã daquela segunda-feira. O final de semana foi de total apreensão. Daquela vez tinha que dar certo, o sujeito botava todas as suas fichas naquela entrevista. Desempregado desde que a crise começara há cinco anos. Vivia de bicos. Motorista esporádico porque não tinha condução própria para se inscrever naquele aplicativo, De tudo um pouco ele já fizera para ajudar a providenciar o pão. Ainda bem que não tinham filhos, já pensou? Tal opção foi adiada. Ele sabe que a esposa anda preocupada porque os anos vão passando e os médicos ficam lhe enchendo a cabeça que com a idade, não é mais aconselhável e blá, blá, blá. Caraca! A moça dá um duro danado como auxiliar na área da saúde. Já pensou se não fossem os seus ganhos fixos. Apesar de pouco é o que vem sustentando o aluguel e as demais despesas, já que sua renda não existe, é esporádica, dia tem, dia não, semana tem, semana não e por aí vai. Por isso a importância daquela entrevista. Ele se preparou. Leu tudo sobre a empresa, seu histórico, sua maneira de agir, filiais e até o número de reclamações trabalhistas ele pesquisou. No boteco, ele ouvira algum tipo de reclamação de alguns funcionários que lá trabalhavam. Não deu ouvidos ao que diziam de ruim. Tudo contava. Chegado o dia, a esposa saiu cedinho para o trabalho, a roupa pronta sobre a cama, calça limpa e camisa de manga. O homem passava os dias de bermuda e camiseta. Roupa social era coisa rara naqueles tempos. Apresentou-se na guarita e foi encaminhado à recepção. Assustou-se com a quantidade de pretendentes, apesar de já esperar uma concorrência brava em tempos ruins, não imaginava que fossem tantos. Não se deu por vencido, uma daquelas vagas tinha que ser sua. Afinal ele topava qualquer função das oferecidas. Pesava contra não ter experiência na área, achou irrelevante. Entregou o currículo à equipe na recepção e acomodou-se numa fila de cadeiras no corredor largo à espera de ser chamado. Atento aos que saiam, em nenhum notou manifestação, nem de alegria e nem de decepção, o que o deixou meio cabreiro, afinal, o que estaria acontecendo. Chegada a sua vez um senhor com voz dura fez algumas perguntas rápidas de praxe, como disponibilidade, traslado e coisas assim. Foi encaminhado à psicóloga na sala ao lado. Ali ele tremeu as bases onde achava que tiraria de letra. A profissional, com o currículo dele aberto sobre a mesa, foi muito profissional e o assustou. Os anos fora do mercado formal lhe foram cruéis e os curtos períodos nos empregos anteriores também. Foi dispensado com o aviso de que, em alguns dias, receberia em casa pelos correios o aviso sobre a contratação.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Um nada em destaque

O médico assim, na lata, perguntou se ele tinha medo de morrer. Caraca. Que louco! É claro que tinha e respondeu ao médico também na bucha, assim de pronto, sem tempo para pensar. Prescrito alguns exames foi marcado o retorno após os resultados. Não precisava marcar hora era só apresentar os exames que seria atendido por ordem de chegada. Foi-lhe receitado um remedinho para tomar toda noite antes de dormir. Até que não foi tão ruim, pensou. Foi direto ao laboratório onde já estava acostumado, já era até reconhecido pelas atendentes. Deram-lhe dois frascos para coleta dos materiais. O valor, podia pagar no cartão parcelado em tantas vezes. Dispensou, disse que seria em dinheiro mesmo assim que pegasse os resultados. Foi para casa pensativo. A angustia perduraria até o resultado e se agravou um pouco só em pensar que teria que acordar com o céu ainda escuro, coletar os materiais; um era fácil era só colocar o frasco na frente do jato e coletar um pouco, já o outro dependia de outros fatores. Em casa, fez só um lanche, afinal o jejum era de doze horas e dormiu tranquilo, sem incomodar a esposa; um dos exames também exigia jejum nesse quesito. Acordou cedinho e deu tudo certo, sem muito esforço, conseguiu coletar os dois materiais e saiu apressado para o laboratório, que também atendia por ordem de chegada. Mesmo assim ainda enfrentou fila, o que só lhe angustiava mais. Chegou, pegou a senha com a simpática atendente que o conhecia, e acomodou-se numa das cadeiras enfileiradas de frente a uma televisão que passava um programa de canal de assinatura e sem volume. A espera não durou muito. Foi chamado no balcão e ficou de pé em frente a moça que atenta digitava os exames um a um, com calma, conferindo e ticando com a caneta na lista passada pelo médico para não esquecer nenhum. Eram muitos os tipos de exames. Ela conferiu os materiais coletados e disse para que entregasse assim que fosse chamado para a coleta do material principal, o sangue. Mudou de lado na bateria de cadeiras, que agora era outra bateria, mais próximas ao corredor das coletas. Agora ele ficava ao lado da televisão que passava um programa de canal de assinatura sem volume. Dessa vez a demora foi pouca. Ao ouvir seu nome completo. Chama-se a atenção aqui para o chamado em voz alta da moça que faria o furo na veia para a coleta do sangue. Um calafrio percorreu-lhe o corpo de cima abaixo ao ouvir o seu nome completo. Se tivesse no carro teria ouvido, pensou. Lentamente levantou-se e dirigiu-se ao cubículo que só tinha uma cadeira com um apoio metálico para o braço esquerdo. A atendente, experiente, quis ser simpática e fez algum comentário tentando tranquilizá-lo, apesar dos seus cabelos brancos, era evidente a agonia. Em voz mansa ela, enquanto preparava uns frascos pequenos de vidro disse de mansinho: apoie o braço esquerdo na cadeira, feche a mão. Ele já estava de camisa de manga, esperto. Com um garrote ela apertou-lhe o músculo do braço, agora abra e feche a mão, pronto. Uns tapinhas na veia e você vai sentir somente uma pontadinha, ela disse, que nada, doeu. Sem ele ver a agulhada é claro, assim que ela mandou fechar a mão ele virou o olhar para a porta do corredor e fixou os olhos num nada que lá se destacava. Ele só percebia que a moça ia trocando os frascos. Pra que tanto sangue, pensou, vou até emagrecer. Pronto, terminou. A moça apertou o braço um pouco no local do furo e pediu para que ele pressionasse com o dedo até ela concluir a identificação dos frascos, inclusive os dois que ele trouxera de casa com tanto zelo. E finalizou: agora vou colocar um esparadrapo aqui e continue pressionando por uns cinco minutos, se quiser tem café, chá e biscoitos no final do corredor.

Equilíbrio

Perdi os sisos do lado esquerdo aos vinte anos
Agora perdi os do lado direito
Espero pelo menos
Conquistar algum equilíbrio

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Meu país está triste


Meu país está triste.
Gente despreparada controla e dá as regras.
Cada dia uma aberração nova percorre o noticiário.
Vergonha mundial.
Briga com adolescente, ofende os artistas,
os países irmãos
e até o Papa.
Ofende até quem deveria defender com unhas e dentes:
seu povo!
Toda essa gente estava por aí, camuflada,
com seu empinado nariz,
à espera de uma oportunidade de se manifestar.
Oportunidade que chegou da forma mais cruel:
a da mentira!
Nossa elite em grande parte sempre foi a mesma:
tem horror a pobre!
O Brasil é muito mais preconceituoso do que racista.
Se o sujeito é nordestino e rico ele é bem aceito.
Se o sujeito é negro e rico ele é bem aceito.
Agora se ele é pobre?
Ele fede aos olhos blindados de nossa aristocracia.
A presença do pobre incomoda em qualquer lugar.
Só que essa elite psicológica não é capaz de perceber,
nem no mais otimista cenário,
que o peso do pobre no orçamento pode mudar.
São poucas as alternativas:
ou o Estado dá condições dignas ao pobre de sobreviver,
com saúde e trabalho,
deixando de ser um peso social,
ou o abandona, como parece ser a opção de muitos.
Nem que seja aos poucos.
Acabando com os programas sociais,
dificultando as ações na saúde,
ou atrasando os benefícios da aposentadoria.
Medidas que afetam em demasiado os menos afortunados.
Sem o Bolsa Família lhe falta o pão.
Sem o Mais Médicos lhe falta a saúde.
Sem a aposentadoria lhe faltam as condições de comer e cuidar da saúde e dos seus.
Já foi o tempo em que um governo despreparado

eliminou raças e opositores.